Durante a vaga de incêndios que assolou Portugal no Verão de 2005, ficou célebre o caso dos três bombeiros franceses que, após terem tido conhecimento, pelos meios de comunicação social, da gravidade da situação portuguesa, se propuseram ajudar os bombeiros portugueses, à conta das suas férias e, eventualmente, suportando os gastos de deslocação, desde que as autoridades portuguesas financiassem as suas despesas em território nacional e promovessem a sua integração numa força de intervenção. Por razões que nunca chegaram a ser totalmente esclarecidas, só muito tardiamente os bombeiros chegaram a Portugal, e a satisfação que tiveram, em termos profissionais, só foi parcial.
Para lá do que é acessório, há aqui factos de inegável alcance político e jurídico: 1.º) os bombeiros falaram verdade, quando mostraram interesse em ajudar as populações afectadas pela catástrofe; 2.º) tinham bons conhecimentos técnicos de combate aos fogos florestais, pondo em causa o argumento de que não seriam necessárias mais forças terrestres (em Portugal, existe um problema grave de falta de capacidade técnica de muitos bombeiros, sobretudo dos voluntários); 3.º) o que influenciou decisivamente a sua decisão de virem para Portugal foi a consciência que tiveram do sofrimento das populações.
Foi a aflição, por natureza excessiva, das pessoas que os encorajou a considerarem os seus deveres para com quem necessitava de ajuda, antes dos seus direitos. Ninguém os ouviu invocar, por exemplo, o direito ao bem-estar individual, nem o direito de circularem e de serem acolhidos livremente por uma corporação portuguesa de bombeiros. O que os mobilizou está bem presente nas palavras de um dos bombeiros: “Hoje os fogos são em Portugal, amanhã serão em França; eu já vivi essa experiência trágica”.
Tudo se processou, conforme o direito, através do Estado português, que é a entidade político-jurídica que, através do Governo, controla as actividades de protecção civil em território português. A verdade é que a pequena ajuda chegou, numa situação em que o sofrimento das vítimas ultrapassava manifestamente a capacidade de intervenção das forças controladas pelo Estado. E chegou – note-se bem – como possibilidade dada pela separação de facto existente entre portugueses e franceses, e não para uma pessoa em concreto, mas para uma pluralidade de rostos desconhecidos, o que normalmente só acontece em situações extremas de guerra ou de opressão.
Não sabemos se os bombeiros franceses alguma vez leram a Ilíada ou a Odisseia, de Homero. Mas é um facto que, como Aquiles diante do Rei de Tróia, após o assassinato de Heitor, salvaram a existência humana e deram início a um tempo de clemência. Foi imitando Ulisses que percorreram, também agora apenas de passagem por Portugal, o caminho de regresso a casa.
Por que o fizeram? O que lhes deu asas?
O que se afigura hoje correcto politicamente para vencer a ameaça dos fogos é aumentar o nível de exigência. Assente em claros fundamentos político-jurídicos, a cooperação europeia tem-se intensificado, designadamente com a criação de mecanismos de apoio técnico e financeiro aos Estados. Também o poder político português se tem pronunciado sobre a questão, ao longo dos anos, tendo já procedido, por diversas vezes, a correcções de percurso e a mudanças de rumo, que não se resumem ao aumento dos meios humanos e materiais afectos ao combate no terreno. Porém, todos os esforços se revelaram até agora insuficientes.
No ano passado, o ministro da Administração Interna, António Costa, veio reclamar uma diferente sensibilidade dos juízes na aplicação de medidas de coacção aos incendiários. O seu comportamento suscitou a reprovação dos partidos da oposição, que entenderam as palavras do ministro como uma intromissão inusitada do poder executivo em relação aos tribunais. Não me parece. O problema dos incêndios é de tal forma grave que o direito se auto-revela diferente, quando alguém afirma a sua impotência diante de um mundo em extinção. O direito que protege as florestas é o mesmo que previne a prática de crimes e pune os criminosos. Como explicar então que o interior do país se vá progressivamente desertificando e a generalidade das pessoas prejudicadas pelo fogo se sinta insegura? Em Agosto de 2005, o fogo abeirou-se perigosamente da cidade de Coimbra, o que nunca antes se tinha visto. Quem se pode esquecer?
Não há dois direitos – esse é o tempo das ditaduras: dos presos comuns e dos presos políticos; da água nas cidades e da seca nos campos; da existência, em suma, de “dois pesos e duas medidas”. Quando o Direito falha, falha como um todo, e o corpo político sofre como um todo.
O que se passa, afinal? As “escolhas certas” podem ser iludidas por mecanismos de diversos tipos, tanto naturais como ideológicos ou políticos, de tipo oportunista, baseados no egoísmo e não na solidariedade. O que os bombeiros franceses nos mostraram é que a solidariedade é uma necessidade material dos seres humanos, não um mero recurso moral, religioso ou cívico baseado em convicções discutíveis. Numa visão certeira das coisas, perceberam o que é essencial à existência humana.
O que percebemos nós sobre o que se passa à nossa volta?
Para lá do que é acessório, há aqui factos de inegável alcance político e jurídico: 1.º) os bombeiros falaram verdade, quando mostraram interesse em ajudar as populações afectadas pela catástrofe; 2.º) tinham bons conhecimentos técnicos de combate aos fogos florestais, pondo em causa o argumento de que não seriam necessárias mais forças terrestres (em Portugal, existe um problema grave de falta de capacidade técnica de muitos bombeiros, sobretudo dos voluntários); 3.º) o que influenciou decisivamente a sua decisão de virem para Portugal foi a consciência que tiveram do sofrimento das populações.
Foi a aflição, por natureza excessiva, das pessoas que os encorajou a considerarem os seus deveres para com quem necessitava de ajuda, antes dos seus direitos. Ninguém os ouviu invocar, por exemplo, o direito ao bem-estar individual, nem o direito de circularem e de serem acolhidos livremente por uma corporação portuguesa de bombeiros. O que os mobilizou está bem presente nas palavras de um dos bombeiros: “Hoje os fogos são em Portugal, amanhã serão em França; eu já vivi essa experiência trágica”.
Tudo se processou, conforme o direito, através do Estado português, que é a entidade político-jurídica que, através do Governo, controla as actividades de protecção civil em território português. A verdade é que a pequena ajuda chegou, numa situação em que o sofrimento das vítimas ultrapassava manifestamente a capacidade de intervenção das forças controladas pelo Estado. E chegou – note-se bem – como possibilidade dada pela separação de facto existente entre portugueses e franceses, e não para uma pessoa em concreto, mas para uma pluralidade de rostos desconhecidos, o que normalmente só acontece em situações extremas de guerra ou de opressão.
Não sabemos se os bombeiros franceses alguma vez leram a Ilíada ou a Odisseia, de Homero. Mas é um facto que, como Aquiles diante do Rei de Tróia, após o assassinato de Heitor, salvaram a existência humana e deram início a um tempo de clemência. Foi imitando Ulisses que percorreram, também agora apenas de passagem por Portugal, o caminho de regresso a casa.
Por que o fizeram? O que lhes deu asas?
O que se afigura hoje correcto politicamente para vencer a ameaça dos fogos é aumentar o nível de exigência. Assente em claros fundamentos político-jurídicos, a cooperação europeia tem-se intensificado, designadamente com a criação de mecanismos de apoio técnico e financeiro aos Estados. Também o poder político português se tem pronunciado sobre a questão, ao longo dos anos, tendo já procedido, por diversas vezes, a correcções de percurso e a mudanças de rumo, que não se resumem ao aumento dos meios humanos e materiais afectos ao combate no terreno. Porém, todos os esforços se revelaram até agora insuficientes.
No ano passado, o ministro da Administração Interna, António Costa, veio reclamar uma diferente sensibilidade dos juízes na aplicação de medidas de coacção aos incendiários. O seu comportamento suscitou a reprovação dos partidos da oposição, que entenderam as palavras do ministro como uma intromissão inusitada do poder executivo em relação aos tribunais. Não me parece. O problema dos incêndios é de tal forma grave que o direito se auto-revela diferente, quando alguém afirma a sua impotência diante de um mundo em extinção. O direito que protege as florestas é o mesmo que previne a prática de crimes e pune os criminosos. Como explicar então que o interior do país se vá progressivamente desertificando e a generalidade das pessoas prejudicadas pelo fogo se sinta insegura? Em Agosto de 2005, o fogo abeirou-se perigosamente da cidade de Coimbra, o que nunca antes se tinha visto. Quem se pode esquecer?
Não há dois direitos – esse é o tempo das ditaduras: dos presos comuns e dos presos políticos; da água nas cidades e da seca nos campos; da existência, em suma, de “dois pesos e duas medidas”. Quando o Direito falha, falha como um todo, e o corpo político sofre como um todo.
O que se passa, afinal? As “escolhas certas” podem ser iludidas por mecanismos de diversos tipos, tanto naturais como ideológicos ou políticos, de tipo oportunista, baseados no egoísmo e não na solidariedade. O que os bombeiros franceses nos mostraram é que a solidariedade é uma necessidade material dos seres humanos, não um mero recurso moral, religioso ou cívico baseado em convicções discutíveis. Numa visão certeira das coisas, perceberam o que é essencial à existência humana.
O que percebemos nós sobre o que se passa à nossa volta?
1 comentário:
Caro Dr. João Caetano, Caros Colegas:
Sem querer intervir "pro domo", pergunto-me se esta intervenção destes bombeiros franceses não configurará um exemplo de Direito Natural. E quiçá, mais especificamente, a resposta a um apelo de um dever natural.
Como tudo isto anda fora de moda, porém!... Curiosamente, relendo "L'Etat providence", de François Ewald, com o fim de preparar a minha intervenção numa mesa redonda na FDUL, comemorativa dos XXX anos da Constituição, reli, no prefácio, que o desafio do "Estado providência" seria (é ainda, certamente) uma nova aventura, tão apaixonante quanto essa outra (ainda não concluída, ou face à qual sempre guardamos nostalgia) do Direito Natural.
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