As Constituições continuam na ordem do dia. Enquanto em Portugal há quem reclame a “revogação” da Constituição (por quem? Com que legimitidade?), e uma constituição por absurdo reduzida a um impossível mínimo denominador comum, constitucionalistas de todo o mundo fazem as malas para o seu grande congresso, em Atenas. Levarei na minha algumas preocupações.
A questão constitucional tornou-se matéria popularizada (já Hegel o deplorava), vulgarizada até, artificialmente excitada pelos opinion makers, mas em que o nível de cultura do cidadão comum é muito escasso. Por cá, é normal uns culparem a Constituição pelas desgraças todas, incluindo as que se lhes devem, e outros clamarem pela Constituição, a torto e a direito, como quem invoca santo milagreiro de sua devoção. Ambos fazem muito mal à Constituição como ela é.
O argumento nacional de uma constituição minimalista não é novo. Também, no coração da Europa, alguns querem um tratado constitucional minimalista... O minimalismo constitucional é típico de uma atitude e uma concepção voluntaristas e proclamatórias face às constituições. Com reminiscências quiçá do constitucionalismo de carta constitucional, de outorga. Carta pequena para não cansar muito e tranquilizar os súbditos – era essa a ideia clássica.
Diz-se também que um tratado constitucional, sendo minimalista, já poderia passar sem referendo... Diz-se que uma Constituição nacional minimalista congregaria o apoio de todos os Portugueses, alegadamente divididos pela actual. Alguns querem minimalismo constitucional. Desconhecimento ou desprezo pelo que é tipicamente constitucional? Porque hoje, de todos os quadrantes políticos se deveria concordar que a matéria constitucional cresceu tanto, e é tão importante jurídica e politicamente, que uma simples folha de papel, ou vinte, não chegam para conter uma Constituição, seja nacional, seja europeia. Trata-se do mais importante ramo do Direito, não de um manifesto retórico. Como se mete o Rossio na Betesga?
A ideia de que o povo tem de compreender muito bem a lei, e, logo, a Constituição, é ao mesmo tempo certíssima e profundamente demagógica. Ninguém deve tornar as coisas opacas aos leigos por gosto. Mas o povo também quer ser curado e nem por isso precisa de saber a que correspondem as fórmulas dos medicamentos que deve tomar. Como Direito, o Direito Constitucional é altamente especializado, técnico. Como é que sem um curso de Direito vai o cidadão entender completamente todas as suas subtilezas?
Há grandes amigos do povo. Mas quererá o povo tais amigos? O que significaria um tratado constitucional minimalista e uma constituição nacional resumida a uma carta de vagos direitos políticos (e espera-se que algo sobre o poder político)? Significaria, antes de mais, carta branca para a liquidação do Estado Social. Significaria, não consenso, mas colocar todos os amigos da solidariedade, da fraternidade, da igualdade, contra essa constituição hipotética. Não por serem contra os direitos políticos que ela eventualmente ainda contivesse, mas por verem numa constituição assim, e muito justamente, a enorme lacuna de outros direitos, que são tão direitos como os primeiros, e sem os quais estes não passam de palavras.
Por exemplo, o direito à vida, tão querido de uns, pouco será sem o direito ao trabalho, caro a outros. La Palice: Enquanto tivermos que trabalhar para viver, não poderemos viver sem trabalhar. E havendo desemprego e inexistindo protecção, desde logo constitucional, do desempregado, é óbvio que se condena à degradação e no limite à morte aquele que não tem mais que a sua força de trabalho para vender.
Também na Europa, uma mini-constituição que deixasse de fora grande parte do património comunitário (o “adquirido comunitário”), que se procurou integrar no tratado reprovado pela França e pela Holanda, seria pouco mais que uma operação de marketing. A Europa não precisa de mais proclamações pseudo-simbólicas de unidade. Precisa de unidade real. E, no plano jurídico, um mini-tratado, ou o que se lhe queira chamar, não resolverá senão o posar para a História dos seus fautores.
Se quisermos ter País, defendamos a nossa Constituição. Se quisermos ter Europa, pensemos numa Constituição a sério. O medo do referendo não pode bloquear os Estadistas europeus. E tenhamos coragem de reconhecer que o referendo apenas aparentemente é a mais democrática das vias para aprovar uma Constituição.
Paulo Ferreira da Cunha
PauloFerreiradaCunha@constitucional.com.br