A Presidência portuguesa da UE tem mandato para um novo tratado. Sonhamos já com um Tratado de Lisboa.
Porquê Tratado e não Constituição? Problema de palavras e de marketing? Talvez não só.
O documento reprovado pelos referendos francês e holandês pretendia instituir, por tratado, uma Constituição.
Mas o que é uma Constituição? Eis a chave da questão.
Substancialmente, é a lei que fixa, para um dado espaço, uma certa sociedade de cidadãos, num certo tempo, os grandes objectivos e valores comuns, a sua forma superior de governo, e pode ainda conter as “cabeças de capítulos” de algumas ou das principais leis. Formalmente, é a lei (sob a forma de código: estruturada, abrangente) de que dependem as demais, às quais todas as demais têm de obedecer: lei das leis.
Há dois tipos de Constituição, histórica e metodologicamente.
A Constituição existe e evolui naturalmente em qualquer comunidade. Todas as sociedades (mesmo as pré- e proto-históricas) tiveram e têm Constituição. As constituições não escritas, ou que, como a do Reino Unido, estão esparsas por vários documentos, adoptados ao longo dos séculos, também em parte fundadas no costume, foram as primeiras: dizem-se históricas, tradicionais, naturais.
A União Europeia, nação de nações, comunidade de comunidades, tem, neste sentido natural, uma Constituição. Semelhante, no surgimento, à britânica: tinha que existir, porque havia uma comunidade política, e evoluiu por textos sucessivos.
Como os agentes históricos da União foram, desde os seus alvores, os Estados, e como a forma de os Estados acordarem entre si é, classicamente, o tratado (entre os particulares é o contrato), foi o tratado o método utilizado para aprofundar a integração europeia. Com ajuda jurídica dos tribunais.
Já a segunda forma de Constituição tem outra história. Ela deriva, como dizia o nosso Almeida Garrett (em sintonia com os preâmbulos das primeiras constituições codificadas francesa, espanhola e portuguesa) de uma perversão a que estão sujeitas as Constituições naturais, históricas: o desprezo ou esquecimento, pelos poderes, dos direitos das pessoas. Foi o que aconteceu com o absolutismo e o despotismo esclarecido, contra que se levantaram as revoluções constitucionais dos sécs. XVII e XVIII.
Há pois outra forma de surgir uma Constituição: colocar por escrito de forma sistemática, sintética e científica os limites do poder e os direitos dos cidadãos. Essa é a Constituição em sentido moderno, voluntarista, ou racional.
A vantagem de uma Constituição racional e não apenas natural sobressai sobretudo em tempos de crise, desconfiança face aos poderes e qualidade duvidosa (em cultura e inventiva) dos juristas e dos burocratas que a aplicam. Podem facilmente esquecer-se os direitos dos cidadãos se não se encontram bem determinados nesse código.
Estes são os reais problemas que temos sobre a mesa. Não saber se Estado ou Soberania nos impedem ou limitam na nova convivência europeia. Categorias datadas e mitos políticos, ambos foram invenções da modernidade, e Portugal é muito mais velho.
Mesmo aprovada por Tratado, a União Europeia terá uma Constituição. Com ou sem referendo. Já a tem.
Compreende-se que, para evitar a coligação de ultras soberanistas e ultras anti-neoliberais (como aconteceu antes) em referendo, e reconhecendo a dificuldade de o cidadão não especializado referendar questões complexas, haja o cuidado de não chamar Constituição ao documento de Lisboa. Há precauções a ter, depois da forma voluntarista com que inicialmente se empreendeu o processo, com o desaire conhecido. Mas a exagero triunfalista não deveria suceder excesso minimalista.
Poderemos perder a oportunidade de ter uma Constituição moderna, com sólida e vasta organização da União, substituindo a selva jurídica existente, apenas pela satisfação de ter chegado a um consenso.
Se o Tratado de Lisboa for apenas mais um, ainda que o pórtico no céu do edifício da UE, será constitucional, mas, na melhor das hipóteses, meramente reformador. Contudo, não será ele Constituição, por falta de completude em si: a Constituição continuará dispersa por vários textos.
A Europa precisa de arrumação jurídica. Temos juristas mais que competentes para isso. Em parte, é um problema sobretudo técnico, sem necessidade de referendo algum.
Não seria melhor aproveitar o mandato e fazer, à Portuguesa e em grande, um texto único, ainda que não fosse muito inovador? Aí teríamos Constituição de Lisboa, mesmo chamando-lhe tratado. E saber-se-ia em que lei se vive.
Paulo Ferreira da Cunha
Porquê Tratado e não Constituição? Problema de palavras e de marketing? Talvez não só.
O documento reprovado pelos referendos francês e holandês pretendia instituir, por tratado, uma Constituição.
Mas o que é uma Constituição? Eis a chave da questão.
Substancialmente, é a lei que fixa, para um dado espaço, uma certa sociedade de cidadãos, num certo tempo, os grandes objectivos e valores comuns, a sua forma superior de governo, e pode ainda conter as “cabeças de capítulos” de algumas ou das principais leis. Formalmente, é a lei (sob a forma de código: estruturada, abrangente) de que dependem as demais, às quais todas as demais têm de obedecer: lei das leis.
Há dois tipos de Constituição, histórica e metodologicamente.
A Constituição existe e evolui naturalmente em qualquer comunidade. Todas as sociedades (mesmo as pré- e proto-históricas) tiveram e têm Constituição. As constituições não escritas, ou que, como a do Reino Unido, estão esparsas por vários documentos, adoptados ao longo dos séculos, também em parte fundadas no costume, foram as primeiras: dizem-se históricas, tradicionais, naturais.
A União Europeia, nação de nações, comunidade de comunidades, tem, neste sentido natural, uma Constituição. Semelhante, no surgimento, à britânica: tinha que existir, porque havia uma comunidade política, e evoluiu por textos sucessivos.
Como os agentes históricos da União foram, desde os seus alvores, os Estados, e como a forma de os Estados acordarem entre si é, classicamente, o tratado (entre os particulares é o contrato), foi o tratado o método utilizado para aprofundar a integração europeia. Com ajuda jurídica dos tribunais.
Já a segunda forma de Constituição tem outra história. Ela deriva, como dizia o nosso Almeida Garrett (em sintonia com os preâmbulos das primeiras constituições codificadas francesa, espanhola e portuguesa) de uma perversão a que estão sujeitas as Constituições naturais, históricas: o desprezo ou esquecimento, pelos poderes, dos direitos das pessoas. Foi o que aconteceu com o absolutismo e o despotismo esclarecido, contra que se levantaram as revoluções constitucionais dos sécs. XVII e XVIII.
Há pois outra forma de surgir uma Constituição: colocar por escrito de forma sistemática, sintética e científica os limites do poder e os direitos dos cidadãos. Essa é a Constituição em sentido moderno, voluntarista, ou racional.
A vantagem de uma Constituição racional e não apenas natural sobressai sobretudo em tempos de crise, desconfiança face aos poderes e qualidade duvidosa (em cultura e inventiva) dos juristas e dos burocratas que a aplicam. Podem facilmente esquecer-se os direitos dos cidadãos se não se encontram bem determinados nesse código.
Estes são os reais problemas que temos sobre a mesa. Não saber se Estado ou Soberania nos impedem ou limitam na nova convivência europeia. Categorias datadas e mitos políticos, ambos foram invenções da modernidade, e Portugal é muito mais velho.
Mesmo aprovada por Tratado, a União Europeia terá uma Constituição. Com ou sem referendo. Já a tem.
Compreende-se que, para evitar a coligação de ultras soberanistas e ultras anti-neoliberais (como aconteceu antes) em referendo, e reconhecendo a dificuldade de o cidadão não especializado referendar questões complexas, haja o cuidado de não chamar Constituição ao documento de Lisboa. Há precauções a ter, depois da forma voluntarista com que inicialmente se empreendeu o processo, com o desaire conhecido. Mas a exagero triunfalista não deveria suceder excesso minimalista.
Poderemos perder a oportunidade de ter uma Constituição moderna, com sólida e vasta organização da União, substituindo a selva jurídica existente, apenas pela satisfação de ter chegado a um consenso.
Se o Tratado de Lisboa for apenas mais um, ainda que o pórtico no céu do edifício da UE, será constitucional, mas, na melhor das hipóteses, meramente reformador. Contudo, não será ele Constituição, por falta de completude em si: a Constituição continuará dispersa por vários textos.
A Europa precisa de arrumação jurídica. Temos juristas mais que competentes para isso. Em parte, é um problema sobretudo técnico, sem necessidade de referendo algum.
Não seria melhor aproveitar o mandato e fazer, à Portuguesa e em grande, um texto único, ainda que não fosse muito inovador? Aí teríamos Constituição de Lisboa, mesmo chamando-lhe tratado. E saber-se-ia em que lei se vive.
Paulo Ferreira da Cunha
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