Direito, Sociedade e Educação
A crise do Direito acompanha a crise da Sociedade. Perturbadora é a complexidade das sociedades contemporâneas: de burocracia, de gigantismo estadual mas de desinvestimento social, de risco e incerteza mas de sufocante programação, de solidão profunda embora de mediatismo e espectáculo avassaladores, de crime e de paranóia do crime. Numa palavra, de esboroamento das nossas certezas particulares e dos nossos direitos, liberdades e garantias, de todas as gerações, que pareciam ainda há pouco “conquistas irreversíveis”.
Não é fácil, num tal contexto, fazer face de forma criativa, decidida, e sobretudo eficaz, às mutações vertiginosas e às sublevações perturbadoras que o presente trouxe. Tanto mais que, contemporaneamente às dificuldades de adaptação e de resposta do Direito aos novos factos, se debatem as nossas sociedades com uma inépcia global do sistema educativo, o qual (apesar de casos de brilhantismo e de competência) em geral não tem estado à altura do que se lhe exigiria enquanto instância formativa e crítica, e assim ferramenta apta a permitir uma lúcida interpretação do Mundo, e uma activa e esclarecida intervenção à generalidade dos cidadãos comuns. A rotinização universitária, a normal submissão da instituição – apesar de alguns gritos de alerta e esboço de algumas, pouco mais que quixotescas, resistências – aos fados da subalternização, e à lógica deprimente do economicismo, tolhem-lhe as energias criativas e apoucam e envilecem os universitários na obediência acrítica a um clima não de sã discussão e criação científica e de saber, com aguda atenção ao real e à prática, mas de simples funcionalismo e até feudalização.
Quando (sem metáfora e sem hipérbole) sobre tantos universitários impende, aqui e agora, a espada de Dâmocles do “despedimento” e do desemprego sem qualquer subsídio, ou seja, o espectro da fome e do envilecimento, da degradação abaixo do mínimo de subsistência, transformando os universitários em seres abaixo do mais humilde trabalhador, não pode de modo algum conceber-se que estejam a trabalhar em condições mínimas. Não há hoje, na Universidade, aquele pano de fundo de tranquilidade de espírito que é conditio sine qua non de liberdade e originalidade. E é óbvio que a insegurança generalizada é terreno úbere de rotina e até de tiranias – instaladas ou em ascensão. Quem se lhes iria opor? Perante o silêncio da Universidade, salvo raras e pouco audíveis excepções, a imagem do jurista e da Justiça em Portugal tem-se vindo a degradar perante a opinião pública.
Imagem da Justiça e Comunicação Social
A imagem da Justiça deriva de duas coisas: da experiência pessoal dos cidadãos em contacto com as suas instâncias, que é necessariamente pontual, e especialmente do contacto com o que lhes vai chegando pela comunicação social, especialmente pelas televisões. Elas constroem uma imagem da Justiça. E ela não é nada lisonjeira, dizendo alguns responsáveis que é exageradamente crítica. Tem de sê-lo...
O que vai chegando ao Cidadão, naturalmente embalado pelo mediatismo da comunicação social, com as suas regras e a sua racionalidade próprias, são, naturalmente, os casos de estrangulamento do sistema da Justiça.
A ideia que tem passado tem sido a da morosidade e complexidade supérflua da Justiça e o seu custo exorbitante, e, assim, a selecção e desigualdade pela fortuna (com outros elementos adjacentes: origem social, marginalidade, etc.).
Mais grave ainda é a ideia de que a Justiça não julga, deixa escapar os “grandes” e apenas apanha nas suas malhas, mesmo assim muito falíveis, algum “peixe miúdo”. A prescrição de processos considerados emblemáticos, a começar pelo “acidente” / “atentado” que vitimou Sá Carneiro e Amaro da Costa, ou a sensação de eternização de casos igualmente simbólicos que ficaram com os nomes “Casa Pia” e “Apito dourado”, com peripécias mediáticas (mas não só) de aparente labelização e deslabelização, sempre perturbadoras da profana audiência (composta por não familiarizados com as subtilezas da Justiça), sobretudo nos níveis e formas de lidar com a incriminação e a culpabilização, não tem contribuído para uma boa imagem da Justiça. Sem que, obviamente, se critique a necessidade desses níveis e formas diversificadas de lidar com o conhecimento progressivo da verdade, da imputação e da culpa num processo, especialmente no domínio penal. Na verdade, nem tudo pode ser claríssimo para todos: a menos que cada cidadão fosse jurista. O que, sendo uma utopia embora, nos remete para a necessidade ingente de maior formação jurídica de todos. Não se entende por que o Direito não deva ser uma cadeira obrigatória no ensino secundário. Mas com um Programa amplamente discutido entre professores de Direito.
O recente caso, conhecido como da menina “Esmeralda”, constituiu certamente a gota de água no divórcio entre a sensibilidade jurídica geral, o sentido de justiça do povo, e a justiça “do asfalto”, ou dos pretórios.
Independentemente das tecnicidades e dos rigores das ciências jurídicas penais e do Direito da Família, choca profundamente as pessoas profanas que uma criança, indefesa face à interpretação do dura lex da Justiça, possa ser furtada aos que, pela diuturna dádiva de amor, apoio e presença, se tornaram seus Pais, sociais e certamente de direito natural. Se há lugar a este último será em casos como este. Choca que se conceba que Pais, assim neste sentido, possam ser concebidos como sequestradores ou raptores de um filho.
Com o devido respeito pelas instituições e pelas certamente doutas peças processuais que têm vindo a selar a sorte desta menor e certamente já tornaram a sua vida muito infeliz (cremos dizerem psicólogos que já gravemente - para não falar da vida dos pais de “adopção”), devemos deixar para a acta da História a nossa discordância face ao que consideramos ser um traço de decadência do Direito vigente. Com olímpica desatenção à adequação social e ao sentido social da conduta em causa, além de uma específica interpretação da culpa, que nos não parece relevar no caso.
Mas casos são casos. Ai de nós se cada sentença discutível (e não podem todas sê-lo?) caísse na rua da opinião dos não especialistas. E é esse o grande problema da mediatização da Justiça, que a ela, como a tudo, quer fazer espectáculo, para captar audiências ao preço da dor dos outros.
Contudo, há casos paradigmáticos em que o não especialista, o profano, tem a sagesse dos “tolos” da literatura: que mostram, na sua aparente nesciência, afinal a maior sabedoria, o bom-senso de que, por vezes, os especialistas são incapazes, emaranhados nas suas tradições, rotinas, e hierarquias, peados pelos seus tabus e antolhados pelos seus mitos.
Por um Novo Paradigma Jurídico
É urgente reconciliar a Justiça com as Pessoas. Reconciliar a Justiça, que também é função social, com a Sociedade que deve servir (com a sabedoria que lhe é própria – e que jamais pode ser anti-social).
O Direito ainda vivo e ainda preocupado com a Justiça que ainda subsiste na nossa sociedade está preocupado. O jurista e a Justiça não são o que já muitos pensam que sejam. Há Direito e há Justiça para além das concretas Justiças. Não se trata de protestar, mas de agir renovadoramente. E que cada jurista deixe de novo nascer em si essa constante e perpétua vontade de dar o seu a seu dono.
Cai a venda da deusa da Justiça.
A sua Balança está desequilibrada.
A Espada partiu-se.
Em sociedades sem sistemas normativos sociais alternativos generalizadamente aceites (o que agora se aprofunda pelo multiculturalismo das nossas sociedades, mas já vinha de antes), e que todos os conflitos descarregam nos Tribunais, ou então na vingança privada de novo crescente, como poderá permitir-se uma Justiça divorciada do sentimento axiológico geral do Povo, ou dos “Povos”?
Depois de um Direito objectivo, romanístico, que dominou durante séculos, e depois de um direito subjectivo, que se arrasta até os nossos dias, convivendo dificilmente com novas realidades, mesmo jurídicas, como os Direitos Humanos, é tempo de aproveitar a crise para uma mudança.
Mudança que a sociedade reclama, e que a Justiça, do fundo da consciência dos Homens, exige. Justiça que faça o balanço dos séculos e que possa agora compatibilizar o Homem e a sua dignidade com a Sociedade e a sua voz, que articule o necessário rigor da técnica com a legitimação implícita do Bom Senso.
A Justiça restaurativa, os Julgados de Paz, a interpretação plural da Constituição, e tantos outros fenómenos, são certamente aflorações de um novo Direito humano que tem de vir. Sob pena da sua morte, e da nossa submissão à simples Força, sob forma de artigos, sentenças, ou meras ordens.
Paulo Ferreira da Cunha, in "Justiça & cidadania", OPJ, 30 Abril 2007
A crise do Direito acompanha a crise da Sociedade. Perturbadora é a complexidade das sociedades contemporâneas: de burocracia, de gigantismo estadual mas de desinvestimento social, de risco e incerteza mas de sufocante programação, de solidão profunda embora de mediatismo e espectáculo avassaladores, de crime e de paranóia do crime. Numa palavra, de esboroamento das nossas certezas particulares e dos nossos direitos, liberdades e garantias, de todas as gerações, que pareciam ainda há pouco “conquistas irreversíveis”.
Não é fácil, num tal contexto, fazer face de forma criativa, decidida, e sobretudo eficaz, às mutações vertiginosas e às sublevações perturbadoras que o presente trouxe. Tanto mais que, contemporaneamente às dificuldades de adaptação e de resposta do Direito aos novos factos, se debatem as nossas sociedades com uma inépcia global do sistema educativo, o qual (apesar de casos de brilhantismo e de competência) em geral não tem estado à altura do que se lhe exigiria enquanto instância formativa e crítica, e assim ferramenta apta a permitir uma lúcida interpretação do Mundo, e uma activa e esclarecida intervenção à generalidade dos cidadãos comuns. A rotinização universitária, a normal submissão da instituição – apesar de alguns gritos de alerta e esboço de algumas, pouco mais que quixotescas, resistências – aos fados da subalternização, e à lógica deprimente do economicismo, tolhem-lhe as energias criativas e apoucam e envilecem os universitários na obediência acrítica a um clima não de sã discussão e criação científica e de saber, com aguda atenção ao real e à prática, mas de simples funcionalismo e até feudalização.
Quando (sem metáfora e sem hipérbole) sobre tantos universitários impende, aqui e agora, a espada de Dâmocles do “despedimento” e do desemprego sem qualquer subsídio, ou seja, o espectro da fome e do envilecimento, da degradação abaixo do mínimo de subsistência, transformando os universitários em seres abaixo do mais humilde trabalhador, não pode de modo algum conceber-se que estejam a trabalhar em condições mínimas. Não há hoje, na Universidade, aquele pano de fundo de tranquilidade de espírito que é conditio sine qua non de liberdade e originalidade. E é óbvio que a insegurança generalizada é terreno úbere de rotina e até de tiranias – instaladas ou em ascensão. Quem se lhes iria opor? Perante o silêncio da Universidade, salvo raras e pouco audíveis excepções, a imagem do jurista e da Justiça em Portugal tem-se vindo a degradar perante a opinião pública.
Imagem da Justiça e Comunicação Social
A imagem da Justiça deriva de duas coisas: da experiência pessoal dos cidadãos em contacto com as suas instâncias, que é necessariamente pontual, e especialmente do contacto com o que lhes vai chegando pela comunicação social, especialmente pelas televisões. Elas constroem uma imagem da Justiça. E ela não é nada lisonjeira, dizendo alguns responsáveis que é exageradamente crítica. Tem de sê-lo...
O que vai chegando ao Cidadão, naturalmente embalado pelo mediatismo da comunicação social, com as suas regras e a sua racionalidade próprias, são, naturalmente, os casos de estrangulamento do sistema da Justiça.
A ideia que tem passado tem sido a da morosidade e complexidade supérflua da Justiça e o seu custo exorbitante, e, assim, a selecção e desigualdade pela fortuna (com outros elementos adjacentes: origem social, marginalidade, etc.).
Mais grave ainda é a ideia de que a Justiça não julga, deixa escapar os “grandes” e apenas apanha nas suas malhas, mesmo assim muito falíveis, algum “peixe miúdo”. A prescrição de processos considerados emblemáticos, a começar pelo “acidente” / “atentado” que vitimou Sá Carneiro e Amaro da Costa, ou a sensação de eternização de casos igualmente simbólicos que ficaram com os nomes “Casa Pia” e “Apito dourado”, com peripécias mediáticas (mas não só) de aparente labelização e deslabelização, sempre perturbadoras da profana audiência (composta por não familiarizados com as subtilezas da Justiça), sobretudo nos níveis e formas de lidar com a incriminação e a culpabilização, não tem contribuído para uma boa imagem da Justiça. Sem que, obviamente, se critique a necessidade desses níveis e formas diversificadas de lidar com o conhecimento progressivo da verdade, da imputação e da culpa num processo, especialmente no domínio penal. Na verdade, nem tudo pode ser claríssimo para todos: a menos que cada cidadão fosse jurista. O que, sendo uma utopia embora, nos remete para a necessidade ingente de maior formação jurídica de todos. Não se entende por que o Direito não deva ser uma cadeira obrigatória no ensino secundário. Mas com um Programa amplamente discutido entre professores de Direito.
O recente caso, conhecido como da menina “Esmeralda”, constituiu certamente a gota de água no divórcio entre a sensibilidade jurídica geral, o sentido de justiça do povo, e a justiça “do asfalto”, ou dos pretórios.
Independentemente das tecnicidades e dos rigores das ciências jurídicas penais e do Direito da Família, choca profundamente as pessoas profanas que uma criança, indefesa face à interpretação do dura lex da Justiça, possa ser furtada aos que, pela diuturna dádiva de amor, apoio e presença, se tornaram seus Pais, sociais e certamente de direito natural. Se há lugar a este último será em casos como este. Choca que se conceba que Pais, assim neste sentido, possam ser concebidos como sequestradores ou raptores de um filho.
Com o devido respeito pelas instituições e pelas certamente doutas peças processuais que têm vindo a selar a sorte desta menor e certamente já tornaram a sua vida muito infeliz (cremos dizerem psicólogos que já gravemente - para não falar da vida dos pais de “adopção”), devemos deixar para a acta da História a nossa discordância face ao que consideramos ser um traço de decadência do Direito vigente. Com olímpica desatenção à adequação social e ao sentido social da conduta em causa, além de uma específica interpretação da culpa, que nos não parece relevar no caso.
Mas casos são casos. Ai de nós se cada sentença discutível (e não podem todas sê-lo?) caísse na rua da opinião dos não especialistas. E é esse o grande problema da mediatização da Justiça, que a ela, como a tudo, quer fazer espectáculo, para captar audiências ao preço da dor dos outros.
Contudo, há casos paradigmáticos em que o não especialista, o profano, tem a sagesse dos “tolos” da literatura: que mostram, na sua aparente nesciência, afinal a maior sabedoria, o bom-senso de que, por vezes, os especialistas são incapazes, emaranhados nas suas tradições, rotinas, e hierarquias, peados pelos seus tabus e antolhados pelos seus mitos.
Por um Novo Paradigma Jurídico
É urgente reconciliar a Justiça com as Pessoas. Reconciliar a Justiça, que também é função social, com a Sociedade que deve servir (com a sabedoria que lhe é própria – e que jamais pode ser anti-social).
O Direito ainda vivo e ainda preocupado com a Justiça que ainda subsiste na nossa sociedade está preocupado. O jurista e a Justiça não são o que já muitos pensam que sejam. Há Direito e há Justiça para além das concretas Justiças. Não se trata de protestar, mas de agir renovadoramente. E que cada jurista deixe de novo nascer em si essa constante e perpétua vontade de dar o seu a seu dono.
Cai a venda da deusa da Justiça.
A sua Balança está desequilibrada.
A Espada partiu-se.
Em sociedades sem sistemas normativos sociais alternativos generalizadamente aceites (o que agora se aprofunda pelo multiculturalismo das nossas sociedades, mas já vinha de antes), e que todos os conflitos descarregam nos Tribunais, ou então na vingança privada de novo crescente, como poderá permitir-se uma Justiça divorciada do sentimento axiológico geral do Povo, ou dos “Povos”?
Depois de um Direito objectivo, romanístico, que dominou durante séculos, e depois de um direito subjectivo, que se arrasta até os nossos dias, convivendo dificilmente com novas realidades, mesmo jurídicas, como os Direitos Humanos, é tempo de aproveitar a crise para uma mudança.
Mudança que a sociedade reclama, e que a Justiça, do fundo da consciência dos Homens, exige. Justiça que faça o balanço dos séculos e que possa agora compatibilizar o Homem e a sua dignidade com a Sociedade e a sua voz, que articule o necessário rigor da técnica com a legitimação implícita do Bom Senso.
A Justiça restaurativa, os Julgados de Paz, a interpretação plural da Constituição, e tantos outros fenómenos, são certamente aflorações de um novo Direito humano que tem de vir. Sob pena da sua morte, e da nossa submissão à simples Força, sob forma de artigos, sentenças, ou meras ordens.
Paulo Ferreira da Cunha, in "Justiça & cidadania", OPJ, 30 Abril 2007
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